É Verdade Que Não Posso Ter Filhos, Doutora?
É Verdade Que Não Posso Ter Filhos, Doutora?
Maria não era baixa nem alta. Era magra. Entrou no consultório sem fazer barulho e evitando me olhar diretamente nos olhos. Fingia tranquilidade.
Se sentou. Delicadamente depositou o envelope que trazia nas mãos em cima da mesa.
-Doutora, preciso saber se é verdade que não posso ter filhos. — decretou pragmática.
Peguei o envelope com a mesma delicadeza com que fora alí colocado por ela. Não queria destoar do tom reverente que ela havia imposto ao momento.
Abri.
FSH — Hormônio Folículo Estimulante : 250,11
Duzentos e cinquenta.
Acima de 30 normalmente encontramos em quem já se encontra na Menopausa.
O mais alto valor de FSH que já havia visto na vida até aquele momento. E até este também.
Abaixei a cabeça e precisei disfarçar meu espanto diante daquele valor tão absurdamente alto de FSH, principalmente em se tratando de alguém de 32 anos.
Tentei fingir normalidade.
-Sim, infelizmente, Maria… Esse valor é realmente muito alto… Realmente com esse valor não é possível engravidar com óvulos próprios…
-Mas, Doutora, não tem um jeito, um remédio, alguma coisa pra gente tomar e abaixar esse hormônio?!? — perguntou sem conseguir mais conter o desespero.
Peguei meu desenho de útero e ovário que sempre uso para explicar:
-Então, Maria, o FSH é produzido na hipófise, uma glândula que fica dentro da nossa cabeça. Ele cai na corrente sanguínea, chega ao ovário e estimula o ovário a fazer os folículos crescerem.
Se o ovário está ‘cansado’ e não consegue absorver esse hormônio para produzir os folículos, quem está com problema?
O FSH ou o ovário?
Se o seu ovário não está dando conta de produzir os folículos, o corpo, em seu desespero, aumenta a produção do FSH, pra ver se resolve o problema, mas não adianta… porque o problema está no ovário…
Ela não queria. Mas, com muito pesar, ela entendia perfeitamente o que eu explicava.
-Mas nem Fertilização In Vitro, Doutora?!?
Continuei: -Quando a gente faz FIV, a gente dá muito FSH pro ovário produzir muitos óvulos para a gente colher no fim do tratamento. Se o seu corpo já tá produzindo muito FSH e você não está conseguindo engravidar, entende que não adianta a gente dar mais hormônio ainda pra ele?
O problema não tá no hormônio. Está no ovário.
Silêncio.
-Sua menstruação é regular? — perguntei
-Como um relógio. De 28 em 28 dias.
-É… Estranho, né…
-Tem história de Menopausa Precoce na sua família? Mãe, irmã, tia?
Ela, sem levantar a cabeça, fez que não.
-É, eu sei… É muito difícil…
E abaixo a cabeça em respeito ao luto que a paciente vivia naquele momento.
Eu tinha acabado de dar a ela a notícia da morte de todos os seus óvulos e, por consequência, da morte de todos os seus possíveis filhos…
Eu havia acabado de matar a esperança dela.
-Então quer dizer que eu não vou poder ser mãe? — ela quebrou silêncio.
-Claro que você vai poder ser mãe! — respondi, dando o meu melhor para tentar tirá-la daquele lugar horrível em que ela estava.
-Mãe não é só a mãe biológica, existem várias formas de ser mãe! Podemos usar o óvulo de uma outra…
-Eu não quero saber disso, Doutora! — ela me interrompeu, ríspida.
E mentalmente ela deve ter completado: -Pelo menos não agora.
E continuou:
-Eu tô com raiva do meu médico! Eu tô com MUITA raiva dele.
-Eu fui no consultório dele TODOS OS ANOS e TODOS OS ANOS eu perguntei: -Doutor, tem algum exame que eu possa fazer pra ver se está tudo bem com minha fertilidade, pra ver se eu sou fértil?
E ele, todos os anos, me respondeu:
-Que nada!!! Não se preocupe com isso!!! Está tudo bem!!!
-Na verdade, Doutora, eu estou com raiva de todos os médicos— decretou.
-A culpa não foi minha, Doutora! Eu tentei!
Concordei com a cabeça.
Respondi: -Eu sei.
Ela pegou o envelope ao mesmo tempo em que enxugava as lágrimas e, tentando voltar à postura, guardou na bolsa. Levantou.
-Obrigada, Doutora. — se despediu formalmente, como quem quer dizer “pode parar de ficar com pena de mim; estou bem”.
O marido dela agradeceu também.
-Imagina… — respondi.
Ele abriu a porta pra ela e eu fiquei ali em pé, olhando pro nada, chocada com o que acabara de acontecer…